desastradas #2 Onze anos e sete exames
sobre os instrutores que tentaram me levar a algum lugar
Não conheço ninguém que tenha levado mais tempo para tirar carteira de motorista do que eu: foram quase 3 anos de autoescola e 7 exames de direção. Eu estava no fim da faculdade, tinha bolsa, fazia estágio e cursava disciplinas. Convenci a mim, e a todo mundo que me conhecia, que eu simplesmente não tinha tempo de fazer aulas de direção na cidade interiorana onde estudava. Assim, minha primeira licença para dirigir foi tirada em Betim, a cidade onde cresci, onde minha família reside e onde eu passava muitos finais de semana. No começo, quando eram apenas as aulas teóricas, pareceu que daria certo. Houve vezes em que resolvi blocos e blocos de questões sozinha, porque não havia professor para todas as aulas. Mesmo assim, eu estava aprendendo.
Estava aprendendo tanto que considerei uma perda de tempo a aula de primeiros socorros. Foi numa tarde terrivelmente quente. Não me lembro do que fazia, mas me lembro do tédio. Aquele tipo particular de tédio moroso que sentimos num dia quente. Aquele tédio que hoje, quando carregamos um mini-oráculo que nos conecta a um volume infinito de conteúdo sobre tudo que nos interessa, é raro. Talvez eu rabiscasse alguma coisa no caderno, ou seguisse na resolução de questões. Lembro de olhar para a carteira quando a professora começou a introduzir a aula: “Pessoal, como vocês sabem, hoje é a aula de primeiros socorros. Eu acho a aula mais importante, tá pessoal, porque pode salvar mesmo a vida de alguém. Aqui na autoescola vocês têm uma introdução muito curta, então recomendo mesmo que depois vocês façam um curso completo de primeiros socorros no corpo de bombeiros ou em outro lugar”.
Lembro de pensar no clichê do professor que começa a aula dizendo que a aula é muito curta para tratar de toda a complexidade que o tema da aula pede e que por isso é importante saber que em função do tempo a aula não vai esgotar o tema. Eu me lembrei dos professores universitários que, na apresentação da ementa, liam o tema da primeira unidade do curso e diziam: “Eu poderia falar um semestre inteiro com vocês só sobre esse tópico”. Em função da quantidade de comentários sobre essa complexidade toda, porém, ele só falava realmente sobre o tema ao longo de trinta minutos de uma aula de duas horas.
Ergo os olhos quando a professora diz: “Não sei qual é a religião de vocês, né, pessoal. Cada um tem a sua aqui e tudo bem. Eu respeito todas as crenças. Tem gente que acha que quando está na hora da pessoa, ela morre e não tem o que fazer. Eu não acho que é bem assim, tá pessoal”. Olho então para o rapaz ao meu lado com uniforme do supermercado local e uma cruz tatuada no pescoço. Olho também para uma mulher mais velha com chaveiro de Nossa Senhora Aparecida na fileira do meu lado. Receio conflito, mas eles não parecem incomodados. “Eu acredito que as coisas na nossa vida estão escritas como num livro. Mas é um livro arbítrio. A gente pode mudar o que está escrito nesse livro”. Todo mundo assentiu pensativo à fala da professora. A devota de Nossa Senhora anotou “livro arbítrio” em uma das páginas de seu bloco de questões. Lemos em voz alta o texto da apostila e resolvemos simulados do DETRAN no resto do tempo.
Com as aulas práticas, era o oposto. Primeiro, eu não sabia que prática constante era tudo. E achei que iria conseguir aprender fazendo aulas uma vez por semana, aos sábados de manhã, quando não tinha aulas da faculdade. O único instrutor que trabalhava nesse turno era George. Ele era um homem magrelo de uns 40 anos que parecia ter sido muito bonito na adolescência. Seu jeito de andar me lembrava do Dinho Ouro Preto. Na primeira aula, me surpreendo com a autoescola deserta. George me explica que nenhum outro instrutor gostava de trabalhar sábado de manhã. Ele, porém, conta que é separado, gosta de acordar cedo e não tem nada pra fazer em casa.
Fiz poucas aulas com George. Lembro vagamente de tocar o carro por ruas vazias. Um dia, passamos pela saída de um bairro com forte fluxo de caminhões e, meio apavorada, tirei um fino do carro da frente ao virar à direita. “Ê Júlia”, George falou rindo, “a gente tem que trabalhar essa noção de espaço. Essa noção de espaço suas é complicada mesmo”. Deduzi que com “suas” George se referia a motoristas iniciantes e me recolhi à humildade de quem sabe pouco sobre alguma coisa. Semanas depois, foi uma colega de faculdade quem me explicou que ele certamente falava de mulheres. “Não é preconceito”, ela me disse enquanto terminamos de almoçar, “têm pesquisas que mostram que mulheres têm mesmo uma noção de espaço pior que a dos homens”. Já falei que o ano era 2011? Era 2011.
A essa altura, eu já tinha desistido de tirar carteira em Betim. Mas levei um tempo dizendo a mim mesma que estava ocupada demais com os encargos da faculdade para continuar na autoescola. Estava mesmo? Acho que sim. Mas também acho que acumulava desculpas para não fazer o exame de direção outra vez. Vestibulares, entrevistas de emprego, testes de direção: essas provas com agentes externos me causavam um faniquito. Deixei meses correrem até dar início à transferência da minha licença para dirigir.
Quando enfim pude retomar as aulas, o instrutor que tive foi Rob Marley. Ele era negro, tinha uma silhueta arredondada e estava sempre sorrindo. Gostava de pegadinhas: uma vez, escondeu o maço de cigarros de outro instrutor, que era fumante compulsivo, e fingiu que tinha jogado no lixo em uma intervenção bem-intencionada contra o vício. Lembro que a gente sempre se deu bem. Ele não era condescendente com minhas dificuldades como George foi. Lembro que me levou para dirigir num trecho curto da rodovia local, para que eu perdesse o medo de tráfego intenso. Quando estava muito calor, a gente parava numa casa que vendia geladinho, fazia uma pausa, jogava conversa fora. Num desses dias, confortável com o clima informal, perguntei a ele algo que queria saber desde quando nos conhecemos, mas que não tinha tido coragem:
“Rob, quem escolheu seu nome?”.
“Meu pai”, ele respondeu com um geladinho azul neon nas mãos, “meu pai é fissurado por Bob Marley. Se você perguntar qualquer coisa sobre Bob Marley ele vai saber te responder na hora”.
“Então por que ele não te chamou de ‘Bob Marley’?”.
Rob me olhou como se nunca tivesse escutado pergunta mais idiota em toda sua vida: “Pra não ficar igual”. Eu fui reprovada algumas vezes depois dessas aulas, e minha licença anual, no fim das contas, venceu. Ela podia ser renovada em até um ano. Adiei, novamente, nas bordas do tempo máximo — daí os “quase três anos” do meu conturbado processo em autoescolas. Depois, fiz muitas aulas com muitos instrutores diferentes, ganhei confiança, passei no exame na terceira tentativa desse ciclo novo. Mesmo assim, considero que foi Rob quem realmente me ensinou a dirigir.
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A CNH veio em 2013. Saí vitoriosa do exame e nunca mais dirigi até 2024. Não sei o motivo, não sei se há um único motivo. Quando tive bons instrutores, dirigia com tranquilidade, até gostava. Na cidade onde morava nessa época, não havia necessidade de carro nas locomoções diárias: era tudo muito reduzido, em mais de um sentido, curtas distâncias, ruas estreitas, mesmos caminhos. Depois, fui fazer mestrado em Campinas e meu primeiro endereço foi em Barão Geraldo, onde sentia uma reprodução da vida interiorana. Entrei no famoso ciclo de “não dirijo porque não tenho carro, não tenho carro porque não dirijo”. Priorizei morar em centros, aprendi as melhores rotas de ônibus e, poucos anos depois, me acomodei ainda mais à falta de carro em função da facilidade dos aplicativos de transporte.
Agora que resido em um bairro de Belo Horizonte, no entanto, começo a antecipar a necessidade de ter carro, por diversas razões. No último dezembro, procurei ajuda especializada para reaprender a dirigir. Chego à loja chamativa que integra uma franquia de origem paulista, focada no atendimento de mulheres que já têm carteira, mas que não dirigem por medo. A secretária que me recepciona me pergunta com muita gravidade quão negativa foi minha experiência de aprendizagem na autoescola. Não minto para ela e digo que a maioria dos instrutores que tive foram legais comigo: não foi por causa deles que parei de dirigir. Ela não parece convencida. Apesar de minha resposta, ela segue recitando o roteiro sobre o serviço especial da franquia. Passa a elencar todos os diferenciais entre seus professores e instrutores comuns. A rivalidade entre autoescolas e escolas para habilitados é séria assim? Decido não contar a ninguém sobre minha confraternização de geladinhos com Rob Marley.
Quem vai nivelar minha habilidade atual é o próprio franqueado, um homem que exibe a rara confiança daqueles que têm habilitação em três categorias. Numa rua relativamente movimentada do bairro comercial onde estamos, deixo o carro morrer algumas vezes. Segurando uma planilha cheia de siglas, ele me explica com cautela e olhos arregalados que eu realmente precisarei de muitas aulas, porque estou com dificuldades de entender o painel, passar a marcha, fazer conversões, arrancar o veículo, fazer controle de embreagem. Ele calcula um pacote de 22 aulas. Fico séria enquanto ele fala. Tento esconder minha felicidade, porque tinha certeza de que esse jovem empresário iria me empurrar nada menos do que 260 aulas de direção e talvez 110 encontros com a psicóloga a serviço da empresa. Por dentro, estou radiante de orgulho por ter conseguido identificar o pedal do freio após 11 anos sem conduzir. Mas desconfio de que ele acharia minha alegria deprimente.
É o pai dele quem me dá aula. É um homem branco com pouco mais de sessenta anos, careca, muito magro. No primeiro dia, uma jovem secretária nos apresenta: “Esse é o Geraldo, ele vai ser seu professor”. Estendo a mão com um sorriso: “Prazer, seu Geraldo”. Ele faz uma careta. “É Geraldo mesmo. Eu sei que estou velho, não precisa me lembrar”. Geraldo é uma pessoa doce e educada, cheia de maneirismos à moda antiga, como abrir a porta do carro para mim, mas tem uma propensão ao mau humor. Enquanto dirigimos, ele reclama constantemente. “Tá vendo aquele motoqueiro que entrou sem dar seta? TÁ TOTALMENTE ERRADO”, “Viu que o jipe não respeitou sua preferência? TÁ TOTALMENTE ERRADO”, “Júlia, tá vendo aquela placa de PARE na esquina? TÁ TOTALMENTE ERRADA”. Ainda que não queira, ele me faz rir. Tenho tentado fazê-lo rir também, mas ele não entende ou não aprecia minhas piadas. Como acontece num processo natural de transferência entre professor e aluno, quero aderir ao que ele ensina e mostrar que sou boa aluna. Não sei por quê, mas algo me diz que se fosse filha de Geraldo ele me diria que meu rosto é muito bonito para estragar com um piercing no nariz.
Na maioria das aulas, saio do carro com o coração na boca. Tenho que admitir que dirigir me dá medo. Após a primeira aula, achei que Geraldo e eu não iríamos seguir adiante, porque quando congelei atrás do volante, sua primeira reação foi me dizer que não poderia me passar de nível se eu não conseguisse evoluir. Por puro orgulho, engulo o choro. Ficamos em silêncio com o carro desligado. Ele afinal, me pergunta: “O que posso fazer pra te ajudar?”. Respondo com um fio de voz: “Me deixa dirigir”. Prática constante, repito mentalmente como um mantra, prática constante. Para minha surpresa, ele se anima. “Beleza, então vamos lá!”. Dou partida no carro. “E não vou tirar o piercing do nariz”. “O que você disse?”. “Nada, me desculpe”.
Chegamos, há alguns dias, à prometida mudança de nível: aula de desvio de obstáculo. Paramos em uma rua tranquila e abrimos o porta-malas. Ofereço, contente, ajuda a Geraldo. Ele aceita com um sorriso largo. Depois, carrega os cones e conta metodicamente a distância entre um e outro a passadas. Ainda no carro, ele já havia explicado que a distância é medida com precisão e ficaria menor a cada aula. Carrego, atrás dele, cabos de vassoura, que entram no miolo dos cones. É o final da manhã, faz um sol de rachar e tenho saudade dos tempos de geladinho. Quando voltamos para o porta-malas, ele me explica o que fazer. E conclui:
“Não se preocupe se acertar um obstáculo, viu, vai no seu tempo”.
“Eu não tô preocupada, não”, respondo, já próxima da porta do motorista, “eu sei que a empresa paga plano de saúde pros cones.”
Geraldo olha para o carro, em silêncio. Tenho medo de que ele me ache uma doida que quer bater nos obstáculos de propósito. Ele retira do porta-malas, com uma expressão séria, um cone completamente estrupiado, muito mal remendado com pedaços discrepantes de fita veda rosca. “Olha esse aqui, coitado, voltou do hospital enfaixado. Tá afastado pelo INSS”. Rimos como duas crianças, no meio da rua.
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