#1 insistindo na maldade de escrever
sobre a chegada ao Substack, a ressureição de um blog e alguns devaneios
“Este é o conversa entre ruínas” — contemplo a frase automática do Substack sem saber como contorná-la. Textos com frequência são sinônimos de problema e problemas, como disse Paulo Leminski, andam em família. Existem textos difíceis de alimentar, outros difíceis de arrematar. Este aqui, por sua vez, está difícil de fazer nascer: há dias amargo o desafio de começar um texto de apresentação, começar de novo qualquer coisa que arrisco chamar “Conversa entre ruínas”, começar a entender uma nova plataforma. Uma parte de mim tem vontade de se esconder embaixo da frase automática, redundante, porém precisa (o conversa entre ruínas é este aqui, é aqui que ele mora, agora), mas sei que é necessário dizer mais.
“Conversa entre ruínas” era o nome do meu blog. Em retrospecto, foi minha primeira incursão no que hoje chamamos ambiguamente de “criação de conteúdo”. Lançado na plataforma Wordpress em 2016, reunía pequenos textos de divulgação de poetas de língua inglesa acompanhados, quase sempre, de traduções minhas. O blog morreu silenciosamente em 2021, em função de novos interesses e uma carga de trabalho triplicada. Como pano de fundo, interferiu também a disponiblidade de ferramentas de comunicação que considero mais dinâmicas.
Embora muito tenha mudado, não me ocorreu batizar esse novo projeto de outra coisa. Em um dos cantos do Substack, escrevi que o conversa entre ruínas daqui é o blog ressuscitado: em parte porque quero literalmente revisitar e republicar o que escrevi lá — me desagrada pensar que há ainda coisas boas por lá esquecidas. O motivo principal, porém, é de que ainda é muito vívida a lembrança de uma vontade de escrever e traduzir, lá em 2016, de modo mais rápido e frequente do que ocorria nos ciclos de publicação acadêmica. Aquela vontade é parecida demais com esta, de agora, embora todo o meu entorno seja radicalmente diferente.
Nada, Esta Espuma - Ana Cristina Cesar
Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.
Há poucos anos, descobri que a maioria das pessoas que acompanhava com assiduidade minhas redes sociais me considerava “poeta”. Na época, essa conclusão me divertiu e espantou, porque até então, por mais que falasse de poesia e literatura , eu não havia publicado um único poema autoral. De lá pra cá, às vezes fui chamada também de “escritora”. Mais rejeitei do que acatei esses rótulos por entender, de modo rasteiro, que poetas são aqueles que escrevem e publicam poemas, que escritores são aqueles que escrevem ficção ou não-ficção por ofício. Apenas agora, porém, começo a de fato a mensurar a importância da escrita para minha reflexão. Dependo da escrita para organizar e lapidar meu pensamento, me expressar nas esferas pública e privada. Na maior parte do tempo leciono, falo, gravo, leio. Do ponto de vista da objetividade da rotina, há pouca escrita. Então como ela atravessa meu presente? Como insistência.
Guardo com carinho “Nada, esta espuma”, de Ana Cristina Cesar, como um dos poemas que marcaram o ciclo breve, porém estelar, do Poemo Podcast: um dos textos que nos reuniu em tempos de pandemia, tempo que não convidava à reunião. Guardo-o também como um dos poemas que mais gosto de Ana C., consideravelmente mais cinzento que “Brinde”, de Mallarmé, com o qual estabelece interlocução direta. No poema brasileiro, não há brinde, mas desencontro. Estamos limitados à amurada do barco, impedidos de compreender a deusa e de satisfazer a ânsia frontal pelo seio da sereia. O que cabe ao eu-lírico é a insistência “na maldade de escrever”. Por que “maldade”? Se ela de fato existe, a quem se dirige? Minha leitura solta me leva às provocações da poesia marginal e também ao leitor hipócrita de Baudelaire (em resumo, à afinidade da literatura com todo tipo de impureza). Ocorre que, em cenário tão hostil, essa maldade também carrega algum poder: talvez o poder de nomear a afronta do desejo, de denunciar a deusa, ou até de enfrentar o mar aberto com o que se tem à mão.
E o que uma coluna, ou blog, ou newsletter pode desejar? Muito pouco além da própria materialidade do escrito. Um território autônomo, mas partilhado, composto de traduções, leituras e textos diversos. Uma insistência entre novas e velhas ruínas. Só no fim vou saber se aqui tem, ou teve, uma escritora.