Com alguma frequência, ao mencionar mulheres escritoras de língua inglesa, me perguntam sobre aquela poeta que vivia reclusa. O mito de Emily Dickinson (1830-1886) povoa o imaginário dos amantes de poesia. Viveu a vida toda na pacata Amherst e, em dado momento, mal saía de casa. Recusava o casamento, mantinha um círculo seleto de amizades, cumpria pequenos rituais excêntricos. Anos após sua morte, críticos tentaram compreender os motivos de tanto isolamento: disseram que Dickinson teve um amor impossível e que por isso decidiu abdicar da vida social.
Suas cartas ao mestre jogaram água no moinho das especulações. Após sua morte, em meio a muitos escritos guardados, foram encontrados três rascunhos epistolares endereçados a alguém apenas mencionado como “Mestre”. Não se sabe quem seria ele, ou se as cartas foram de fato passadas a limpo e enviadas depois. Nelas, Dickinson dialoga com um amor irrealizado e traça uma intrincada dinâmica de poder com esse outro. Fragmentárias por natureza, as cartas carregam muitas camadas de leitura ocultas em meio a rasuras e sugestões, e oferecem ao leitor um mergulho único na mente criativa de Dickinson.
Charles Wadsworth, Samuel Bowles e Susan Gilbert foram alguns dos nomes atribuídos ao interlocutor misterioso. No entanto, nenhum deles corresponde com inteira precisão aos detalhes fornecidos nas cartas e não há consenso crítico nessa identificação. Aprecio muito a hipótese de Susan Howe, que questiona a fixação com a reclusão de Dickinson e propõe leituras das cartas enquanto fabricações literárias de uma poeta em exercício.
Uma das maiores alegrias de 2024 foi ver minha tradução Cartas ao Mestre publicada pela Mambembe Livros. A genial Jessica Groke compreendeu perfeitamente a complexidade das cartas e criou uma ilustração de capa única no mundo. O livro ganhou corpo em formato de bolso, intimista, num projeto gráfico que tem tuda a ver com o texto.
Deixo pequenas citações das cartas como um gostinho para quem ainda não leu o texto na íntegra (sou suspeita, mas considero uma aquisição imperdível).
Viva Dickinson!
O Vesúvio não fala — Etna — não —
Teuum deles — disse uma sílaba — mil anos atrás, e Pompeia ouviu, e se escondeu para sempre — Ela não podia olhar o mundo nos olhos, depois — Acho — Pompeia Recatada! “Vou falar do desejo” — você sabe o que é uma sanguessuga, não sabe — eestá lembrando queo braço de Margarida é pequeno — e sentiu o horizonte não foi — e o mar — nunca chegou tão perto de lhe fazer dançar?
Não sei o que você pode fazer quanto a isso — obrigada — Mestre — mas se eu tivesse Barba na cara — feito você — e se você — tivesse as pétalas da Margarida — e gostasse assim de mim — o que seria de você? Conseguiria me esquecer numa luta, ou numa fuga — ou em terra estrangeira?
Mais que a Abelha, me picou o Espanto — ela não chegou a tanto — mas fez música alegre com sua força por onde eu
possa irdeva irpassei — o Espanto consome meus quilos, você disse que eu não tinha nenhum de sobra —
Nem pensei em lhe dizer, você não veio até mim “em branco”, nem me disse por que,
Rosa nada, mas me senti florescer,
Pássaro nada— mas cavalguei o Etéreo.
Emily Dickinson, Cartas ao Mestre
Tradução: Júlia C. Rodrigues